Por Sabrina Ruela (sabrina@es365.com)
A Santa Casa de Misericórdia de Vitória está no centro de uma polêmica envolvendo alegações de negligência e descaso no atendimento a pacientes do Sistema Único de Saúde (SUS). A Santa Casa de Misericórdia de Vitória é um hospital geral, privado e filantrópico, localizado na capital do ES. É a mais antiga instituição de saúde do estado e é administrada pela Emescam, instituição de ensino superior da Santa Casa.
O caso de Juliano (nome fictício), morador de Vitória que pediu que sua identidade fosse preservada, e que enfrentou uma série de dificuldades e atrasos em seu tratamento de pedras nos rins, expõe possíveis falhas no sistema de saúde pública que têm gerado preocupação entre especialistas e autoridades. Este relato busca trazer à tona questões críticas no sistema de saúde pública, incentivando um debate construtivo sobre melhorias necessárias para assegurar o direito à saúde previsto na Constituição Federal.

Confira a linha do tempo dos acontecimentos:
- 1 – Descoberta de pedras nos rins: Há aproximadamente um ano e meio, Juliano foi diagnosticado com pedras nos rins; Inicialmente marcada para 18 de novembro, a cirurgia foi postergada devido a uma gripe e realizada em 7 de janeiro;
- 2 – Complicações pós-operatórias: Após o procedimento, Juliano apresentou dor intensa e coágulos de sangue na urina; Devido às dores, Juliano permaneceu hospitalizado por mais dois dias, enquanto outro paciente submetido à mesma cirurgia foi liberado antes. Médicos atribuíram as dores a uma reação “normal” do pós-operatório;
- 3 – Alta hospitalar sem suporte adequado: No dia da alta, Juliano não foi conduzido de cadeira de rodas até a portaria, como é de praxe para pacientes pós-cirúrgicos, mas teve que caminhar acompanhado por uma única enfermeira, sob a justificativa de que o elevador estava com defeito;
- 4 – Revisão médica sem soluções: Na primeira consulta de revisão, uma semana após a cirurgia, as dores persistentes foram novamente consideradas normais pelos profissionais da saúde;
- 5 – Retorno ao hospital sem diagnóstico preciso: Devido à continuidade das dores, Juliano retornou à Santa Casa, onde, após três horas de espera, recebeu medicação intravenosa e foi liberado sem um diagnóstico claro;
- 6 – Atendimento por profissionais não identificados: Durante esse retorno, foi atendido por uma médica não identificada, possivelmente residente ou acadêmica. O atestado médico foi assinado pelo cirurgião que realizou a retirada dos cálculos renais;
- 7 – Exames revelam novas pedras: Em 17 de fevereiro, um ultrassom revelou a presença de três pedras de 0,5 cm. Apesar da remota possibilidade de terem se formado após a cirurgia, um acompanhamento adequado poderia tê-las identificado precocemente; Um exame de urina solicitado pela Unidade Básica de Saúde mostrou ainda a presença vazamento de sangue;
- 8 – Dificuldade para agendar consultas: Ao buscar nova consulta com um urologista na Santa Casa, foi informado que a agenda só seria aberta em 10 de março, sem garantia de atendimento imediato, podendo a espera se estender por até três meses.
- 9 – Relatos de discrepâncias no atendimento: Outra paciente relatou que sua sonda foi removida em sete dias pelo SUS, enquanto a de Juliano permanecia sem previsão de retirada.
- 10 – Comentário controverso sobre diferenciação de atendimentos: Uma médica da Santa Casa mencionou que, se o atendimento fosse particular, a sonda já teria sido removida, mas, por ser pelo SUS, a demora era considerada “normal”.

Veja a seguir o posicionamento das autoridades a respeito do cuidado para com os pacientes e a forma como são conduzidos casos semelhantes ao de Juliano.
Secretaria de Saúde: A Secretaria da Saúde (Sesa) informa que realiza fiscalizações periódicas nos hospitais contratualizados pelo SUS, por meio de auditorias e acompanhamento de indicadores de qualidade assistencial. Ressalta também que queixas ou denúncias podem ser formalizadas pelo Sistema de Ouvidoria, através do e-mail ouvidoriasus@saude.es.gov.br ou pelos telefones (27) 3347-5732 / (27) 3347-5733.
Santa Casa de Misericórdia de Vitória: A instituição afirma prezar pela qualidade, excelência e humanização no atendimento, seguindo protocolos adaptados às necessidades clínicas de cada paciente. Informa também que médicos residentes e acadêmicos atuam sob supervisão de profissionais qualificados, garantindo que todas as práticas adotadas sigam os padrões estabelecidos.
Direitos para os pacientes
Diante de denúncias de negligência e demora no atendimento, muitos pacientes se perguntam quais são seus direitos e quais medidas podem ser tomadas em casos de erro médico ou descaso no serviço público de saúde. Para esclarecer essas questões, o ES365 conversou com o Dr. Samuel Izidio Pires Spanhol, Advogado e servidor público, que explica quais providências os pacientes podem tomar e como a justiça tem lidado com casos semelhantes.
ES365: A demora no atendimento, a falta de informações claras sobre o processo pós-cirúrgico e o não acompanhamento adequado podem caracterizar negligência médica?
Dr Samuel: A Constituição federal de 1988 determina no artigo 196 que a saúde é um direito de todos e um dever do Estado e a sua garantia se dará “mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Nesse sentido, a Carta dos Direitos dos Usuários do SUS, no artigo 3º é clara ao enfatizar que “toda pessoa tem direito ao tratamento adequado e no tempo certo para resolver o seu problema de saúde”. Esse preceito é corroborado com o parágrafo único que diz que “é direito da pessoa ter atendimento adequado, com qualidade”, e para isso também deve ser assegurado “de maneira clara, objetiva, respeitosa e compreensível quanto a objetivos, riscos e benefícios de procedimentos cirúrgicos, duração prevista do tratamento proposto e tempo de recuperação, além de outras informações”;
Quando o profissional médico, ignora os preceitos da Constituição e não observa os preceitos das leis infraconstitucionais para a saúde e àquilo preconizado acima na Carta, pode, sim, estar sendo negligente infringindo também o Código de Ética Médica que proíbe expressamente ao médico “causar dano ao paciente por ação ou omissão caracterizável como imperícia, imprudência ou negligência”.
O fato de o paciente não ter recebido explicações sobre dores pós-cirúrgicas pode ser considerado falha na comunicação médica?
Pode, desde que não conste essas orientações em seu prontuário e/ou outros documentos médicos de registro. O próprio Código de Ética Medica traz de forma expressa que é vedado ao médico “Deixar de esclarecer o paciente sobre as determinantes sociais, ambientais ou profissionais de sua doença”.

O comentário de uma médica, indicando que o tratamento seria diferente se fosse particular, levanta questões sobre discriminação entre atendimento público e privado. Quais são as ações legais que podem ser tomadas pelo paciente?
A depender do contexto e se tiver provas dessas falas, o paciente pode se basear na Carta de Direito aos Usuários do SUS em seu artigo 4º e Parágrafo Único, que diz que “toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, realizado por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortável e acessível a todos e, que é direito da pessoa, na rede de serviços de saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discriminação, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião, orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, estado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência”.
Quais são as possíveis consequências para o hospital e os profissionais envolvidos?
O paciente pode buscar o caminho administrativo por meio da Ouvidoria, expondo razões e motivos de sua insatisfação com o serviço e solicitar providências quanto a melhorias; e, querendo, também pode fazer uma denúncia no âmbito do Conselho Regional de Medicina dos profissionais. Através da Lei de acesso à informação, também pode solicitar informações sobre o serviço médico da unidade hospitalar.
Na esfera extrajudicial, pode acionar o Ministério Público denunciando as irregularidades presenciadas e este após suas investigações poderá mover uma ação em desfavor do Estado.
Já por meio judicial, após solicitar cópia do seu prontuário médico, o paciente que se sentiu prejudicado pode, a partir de um advogado particular ou defensor público, mover uma ação de obrigação de fazer contra o Estado para que este execute os procedimentos ainda não executados, atrasados ou não finalizados, bem como mover uma ação de danos morais buscando reparar os danos sofridos.
Contexto nacional
Casos de demora no atendimento pelo SUS não são isolados. Recentemente, o Estado de Pernambuco foi condenado a pagar R$ 20 mil em danos morais a uma paciente que aguardou mais de sete anos por uma cirurgia corretiva, sofrendo agravamento de sua condição devido à espera prolongada.
Além disso, filas de espera no SUS atingiram recordes, com pacientes aguardando até 634 dias por procedimentos cirúrgicos. Uma pesquisa do Datafolha, feita em 2018, revelou que 45% dos pacientes do SUS aguardavam há mais de seis meses por consultas, exames ou cirurgias, evidenciando um problema recorrente no sistema de saúde pública.
A demora no atendimento e na realização de procedimentos cirúrgicos pelo SUS tem sido motivo de ações judiciais, com tribunais reconhecendo o direito dos pacientes à indenização em casos que resultem em danos à saúde. Especialistas apontam que a falta de profissionais especializados e infraestrutura adequada contribuem para a morosidade no atendimento, afetando diretamente a qualidade de vida dos pacientes.
O caso de Juliano destaca desafios enfrentados por pacientes do SUS na busca por atendimento adequado e tempestivo. A situação traz à tona a importância de investimentos contínuos na saúde pública e na fiscalização rigorosa dos serviços prestados, garantindo que todos os cidadãos recebam atendimento digno e eficiente.